Crônica e Poesia 2

Crônica “Como comecei a escrever”

Aí por volta de 1910 não havia rádio nem televisão, e o cinema chegava ao interior do Brasil uma vez por semana aos domingos. As notícias do mundo vinham pelo jornal, três dias depois de publicadas no Rio de Janeiro. Se chovia a potes, a mala do correio aparecia ensopada, uns sete dias mais tarde. Não dava para ler o papel transformado em mingau.

Papai era assinante da Gazeta de Notícias, e antes de aprender a ler eu me sentia fascinado pelas gravuras coloridas do suplemento de Domingo. Tentava decifrar o mistério das letras em redor das figuras, e mamãe me ajudava nisso. Quando fui para a escola pública, já tinha a noção vaga de um universo de palavras que era preciso conquistar.

Durante o curso, minhas professoras costumavam passar exercícios de redação. Cada um de nós tinha de escrever uma carta, narra um passeio, coisas assim. Criei gosto por esse dever, que me permitia aplicar para determinado fim o conhecimento que ia adquirindo do poder de expressão contido nos sinais reunidos em palavras.

Daí por diante as experiências foram se acumulando, sem que eu percebesse que estava descobrindo a leitura. Alguns elogios da professora me animavam a continuar. Ninguém falava em conto ou poesia, mas a semente dessas coisas estavam germinando. Meu irmão, estudante na Capital, mandava-me revistas e livros, e me habituei a viver entre eles. Depois, já rapaz, tive sorte de conhecer outros rapazes que também gostavam de ler e escrever.

Então começou uma fase muito boa de troca de experiências e impressões. Na mesa do café-sentado (pois tomava-se café sentado nos bares, e podia-se conversar horas e horas sem incomodar nem ser incomodado ) eu tirava do bolso o que escrevera durante o dia, e meus colegas criticavam. Eles também sacavam seus escritos, e eu tomava parte nos comentários. Tudo com naturalidade e franqueza. Aprendi muito com os amigos, e tenho pena dos jovens de hoje que não desfrutam desse tipo de amizade crítica.

("Para Gostar de Ler - Volume 4 - Crônicas", Editora Ática - São Paulo, 1980, pág. 6.)

Poesia

E ACONTECEU A PRIMAVERA

I

Que alguém te cante e te descante,
Ficou urgente, Primavera,
Para que ao menos em cantiga,
Neste papel aberto às gentes,
A flor antiga se restaure.
Te cantarei em Pernambuco,
Onde és cidade, e no Pará,
Onde mulheres plantam malva
Sob o título municipal,
E em Rondônia cantarei
A corredeira Primavera,
Pois nesses nomes de lugares
E num acidente geográfico
Tu pousaste como um pássaro,
Modesto pássaro cinzento
De asas pretas e cauda preta,
Só a lembrar, no papo branco,
Extintas primaveridades.

Primavera que tanto habitas
A bráctea rósea da buganvília
(em que jardins à vista oculto
Sob a fumaça que é nosso azul
Residual?)

Como habitavas, parnasiana,
O soneto crônico e clássico
Dos poetas consumidores
De velhos tópicos europeus,
É forçoso que alguém celebre
O ímpeto juvenil da Terra

Mesmo poluída, desossada,
Terra assim mesmo, seiva nossa.
E te ofereço, Primavera,
A arvorezinha de brinquedo
Em pátio escolar plantada
Enquanto lá fora se ensina
Como derrubar, como queimar,
Como secar fontes de vida
Para erigir a nova ordem
Do Homem Artificial.

Ah, Primavera, me desculpa
Se corto em meio uma floresta
Latifoliada, pois tenho pressa
De correr na estrada de Santos.
Não te zangues se já não vês

Em teu séquito lírico
Aquele sininho-flor, descoberto
Em longes tempos por George Gardner
E que soava só no Brasil:
Foi preciso (teria sido?)
Matar o verde, substituí-lo
Pela neutra cor uniforme
Que é uniforme do Progresso.


Primavera, prímula veris,
Em palavra quedas intacta,
Em palavra pois te deponho
A minha culpa coletiva,
O meu citadino remorso
Minha saudade de água, bicho,
Terra encharcada de promessas,
E visões e asas e vozes
Primitivas e ternas, como
Eterno (e amoroso) é o homem
Ligado ao quadro natural.

Primavera, fiz um discurso?...
Primavera, tu me perdoas?...

II

- 22 de setembro, mina minha.
Vamos curtir a primavera
Em compact cassete tape, meu morango?
Bota aí o Botticelli
Estereoutransfigurado em Debussy
E vê (primeiro veja os olhos) Simonetta
Vespucci toda flor
Florentil florindamente
Da flora da Tijuca...

-Não. Prefiro o Sacré du Printemps
Que transa a primavera mais primeva.
Assim, no sala-e-escuro
Dos sala-e-quarto conjugados
Os dois ficamos respeitando
Um princípio de seiva e de nenúfar
Enquanto a chuva –plic - tamborina
Seu samba de uma nota só
Na área de serviço.

É primavera, broto-brinco:
Saiu no jornal,
A TV anunciou,
O Governo consentiu,
O Congresso aplaudiu
O comércio vendeu

Arranjos de ikebana
E em algum lugar florescem três-marias
Que são muitas marias, muitos nomes.
Vamos também curtir os nomes
(são presentes do povo à gente-bem):
Riso-do-prado
(cadê o prado?)
Amor-de-estudante
(pobre! No cursinho
Que vira cursão
E invade o Brasil),

Unha-de-gato
(envenado
No Passeio Público?),
Sempre-viçosa...

Isto! A esperança
Pousa na balança
O seu peso-pluma.
- Você está esquecido
Da Maria-branca,
Da pombinha-das-almas
E da noivinha...
Asas-pseudônimos
De primavera.
(Ah, vero barato
Esse de brincar
De estação flores
De concreto-objeto!)

-Oi, depressa, vamos
Semear canteiros,
Preparar estacas
E mergulhões,
Plantar tubérculos
De cromo-gladíolos,
Túberas de dálias
E tinhorões,
Repicar sementeiras,
Controlar lagartas,
Ácaros e trips,
Dizimar pulgões.

(Ui, primavera é fogo
Se levada a sério!)

- Vamos pintar de verde
As áreas crestadas,
Pôr na parede
A árvore genealógica,
Comprar um sabiá
Mecânico,
Sortear
O beija-flor de beijar cimento?

É primavera, escuta o Burle Marx:
Diz que havia jardins
Em torno das casas,
Havia matas
A cavaleiro das cidades,
Florestas
Onde o jacarandá e o mogno conversavam
A conversa de séculos.
(Fecharam o bico,
Chegado o eucalipto.)

Broto gentil, a primavera
Será um sonho de sonhar-se
Na fumaça
No grito
No sem azul deserto
Das cidades mortas que se julgam vivas?

Carlos Drummond de Andrade, in Discurso de Primavera e algumas sombras, Record, 2006

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